terça-feira, 2 de abril de 2013

A MENINA, O SOLDADO E O PRISIONEIRO




Naquele dia, a menina saiu para a escola mais cedo. Aos seus olhos, abria-se uma daquelas manhãs de sol morno e vento suave, uma manhã de abril: bela e orvalhada. Levava a pasta escolar na mão esquerda e na direita, um ramo de rosas. Estava alegre, embora um pouco ansiosa: sua equipe iria declamar um poema, o mais longo, porém o mais bonito entre os que a professora distribuíra. Começou a percorrer a longa avenida de terra batida que a levaria ao centro da cidade: de um lado, o pasto de capim pangola onde o pai mantinha algumas vacas leiteiras e do outro, um matagal entremeado por casas esparsas e humildes. Ia descendo a ladeira devagar, mergulhada na leitura:
“Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem
Que o homem confiará...”

            Quando estava no meio da ladeira, beirando a lagoa, ouviu gritos e imprecações. No topo, divisou um homem a cavalo. Parecia que era um soldado conduzindo um prisioneiro. Parou e ficou aguardando... Confiará no homem como o vento confia na palmeira... O coração acelerou. Meu Deus! Como a palmeira confia no ar... Era um homem alto e moreno, imponente na farda verde do exército. Anda vagabundo! Anda! À frente do cavalo, alguém avançava a passos trôpegos, instado pelos gritos e pelas lapeadas da taca. Como o vento confia no azul... Cachorro! Ladrão! A menina susteve a respiração. O prisioneiro era um menino magro, um pouco mais alto do que ela, e estava com as mãos atadas. Como o menino confia em outro menino... Estava preso ao cavalo por uma corda e, a todo instante, parecia que o animal iria pisoteá-lo.  Arregalou os olhos tentando ver melhor através da cerração que vinha da lagoa... O homem confiará no homem como o vento confiará... A folha de papel escapou-lhe da mão. Reconheceu o cavalo, o soldado e o menino: Trovão, o Sargento Oduvaldo e Chiquinho. O tempo parou nas asas douradas da manhã. A menina abraçou a pasta com força, um grito inarticulado nos lábios abertos, o vento desmanchando as pregas da saia, as patas dianteiras de Trovão suspensas no ar, as dragonas reluzindo nos ombros do cavaleiro... O lobo e o cordeiro pastarão juntos... Chiquinho olhou para ela, o rosto magro devastado de vergonha e de dor. Num fiapo de voz, a menina implorou ao pai que libertasse o filho, os olhos alagados, o corpo trêmulo. Inclusive as terças-feiras mais cinzentas... O soldado de chumbo a encarou, metais nos olhos, metais na farda, metais no coração, ordenou que seguisse seu caminho para a escola; o filho iria ficar a pão e água, preso no quartinho dos fundos. Chiquinho, seu vizinho, seu colega – ficaria preso – sem poder declamar as últimas estrofes.
A menina apanhou o poema no chão e foi declamando aleatoriamente, os versos de Thiago de Mello, enquanto subia a ladeira quase correndo:
abertas para o verde onde cresce a esperança.”
haverá girassóis em todas as janelas
a abrir-se dentro da sombra
“Fica decretado que, a partir deste instante,

          Na aula de Português, justificou a ausência de Chiquinho e declamou emocionada a estrofe do poema que caberia a ele:
 “Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
A partir desse instante, e do pântano enganoso das bocas.
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e sua morada será sempre
o coração do homem.”