quarta-feira, 27 de junho de 2012

O FRUTO PROIBIDO




 Quando ela retornou à sala, o menino comia vorazmente. Escondia o alimento entre as mãos. O suco escorria-lhe pelos cantos da boca. Ao perceber o olhar guloso da menina, passou a comer com requintes de prazer: chupava, revirava os olhos, estalava a língua, sussurrava e lambia os beiços. Que fruta era aquela? Onde ele tinha achado? SAPOTI! No quintal da outra professora! Implorou por um pedacinho, só para experimentar. Não. Se quisesse, fosse procurar pelo chão ou jogasse pedras até derrubar um. Então era por isso que aquele moleque corria para o quintal assim que a professora dava o recreio da banca! As meninas iam brincar na praçinha da igreja e voltavam tristes de fome, enquanto o peste do gordo enchia a pança e voltava do recreio todo risonho e ainda mais pirracento.
Teve vontade de se vingar. Podia combinar com as outras de contarem tudo à dona da casa. Com certeza, a velha Catarina iria lhe passar uma descompostura terrível e exigir da sobrinha, a meiga professora, um bom castigo para o atrevido. Naquele tempo, derrubar fruta do quintal do vizinho era malinagem imperdoável ou até mesmo um furto. Chegou a imaginar a cena: dona Catarina escura de raiva, postura de general, dedo em riste a exigir explicações; e o moleque pálido, colado na parede, a papada tremendo, sem conseguir gaguejar uma desculpa. Por alguns segundos, ficou dividida entre os dois prazeres: a vingança ou o sapoti. O recreio estava quase terminando, o tempo urgia e o estômago exigia. Olhou o relógio da sala e pediu a Deus que a professora cochilasse um pouquinho além da meia hora habitual. Correu para o quintal. Procurou, procurou e nada. Não havia nenhuma fruta no chão. O jeito seria atirar pedras. Olhou para o alto e viu o sapotizeiro imenso – tão alto quanto as palmeiras da praça – carregado de frutos. Ela tinha pontaria péssima, nunca conseguiria derrubar um sapoti. Atirou pedras até ouvir o sininho da professora. Voltou de cabeça baixa para não ver a cara debochada do gordo.
Aquele fracasso se repetiu infinitamente: quando saiam juntos ao quintal, ele dizia que não tinha nenhum sapoti maduro; se saía primeiro, o gordo ficava terminando uma tarefa; se ia brincar na praça, o bandido fugia para os fundos e ainda lhe mostrava uma fruta escondida no bolso da calça. O pior era quando ele não tinha tempo de comer e passava o resto da tarde lhe fazendo figa: cada vez que a professora se ocupava com uma das meninas,  apontava o bolso ou lhe mostrava uma pontinha do sapoti. Ela ficava doida para falar dos sapotis com as colegas, mas desistia porque um movimento maior no quintal, chamaria a atenção de dona Catarina ou mesmo do pessoal vizinho.
Foi assim até o finalzinho da safra, quando teve uma ideia salvadora: Chegaria à banca mais cedo e encontraria um ou dois sapotis caídos no chão; talvez até mais, porque chovera pela manhã e era segunda feira.
Assim fez. Com meia hora de antecedência, foi recebida por dona Catarina que lhe mandou ir brincar nos fundos porque era cedo demais e  estava com uma visita na sala. A menina voou até o quintal com a boca cheia de saliva e o coração exultante. Olhou, olhou, esquadrinhou palmo a palmo e não encontrou nenhuma fruta, sequer uma estragada. Frustrada em seu desejo, tomou uma decisão da qual se arrependeria por toda a vida.
Empilhou uns tijolos, juntou dois caixotes, trepou no muro e pulou para o quintal vizinho. E que maravilha!  O chão sob a sapata estava coberto de folhas e de sapotis! Escolheu os maduros, encheu a saia do vestido e, radiante, correu para pular o muro. Só então percebeu que, daquele lado, o muro era bem mais alto. Ansiosa, começou a procurar algo que lhe facilitasse a subida: uma pedra, um toco de madeira, uma escada. Não encontrou nada. Nervosa, avistou umas cadeiras na varanda e correu para pegar uma. Foi, então, que a brincadeira acabou.
Havia uma pessoa caída no quintal Seu coração disparou, os ouvidos zumbiram, as frutas despencaram do colo. Ali, no meio do caminho, um pouco antes da varanda, uma menina jazia no chão. Viu o vestido branco meio suspenso, as pernas abertas, o cabelo desalinhado, o rosto arroxeado e sujo de vômito. A menina estava morta. Era Valdirene, a filha da vizinha. Tentou gritar, não conseguiu. Ficou paralisada, mas de algum modo, suas pernas adentraram a casa deserta e chegaram ao quarto da mãe. Com um fiapo de voz, acordou a mulher e lhe falou da filha caída no quintal.  
Em poucos instantes, os gritos da mãe fizeram toda a vizinhança acorrer ao quintal. Angélica escapou pela porta da frente e fugiu para casa. Escapou, mas levou consigo uma fotografia daquele quintal: o muro sem reboco, a árvore imensa, a terra molhada, as folhas caídas, os sapotis esparramados no chão, a menina morta e a mãe agarrada ao corpo da filha uivando...uivando.
Só algum tempo depois, escutando um comentário aqui, um cochicho ali, ficou sabendo que a menina havia morrido envenenada. Uns diziam que Valdirene havia comido batata com leite no café da manhã, outros que merendara manga depois de tomar leite, e alguns sussurravam que a madrasta lhe oferecera um pedaço de bolo envenenado. A bruxa morava na casa vizinha e teria lhe entregado o bolo por cima do muro. Diziam que a viúva não queria repartir com a enteada a pequena fortuna que o marido deixara. Não achava justo com seus dois filhos que a bastardinha herdasse alguma coisa.
O caso foi abafado, e a verdade, que só o imenso sapotizeiro testemunhou, nunca veio à tona.
O tempo passou, a menina mudou de cidade, entrou na faculdade, tornou-se professora. Cresceu sem nunca experimentar um sapoti. De vez em quando, era tentada por um cesto cheio numa banca de frutas: parava, olhava e seguia em frente.
Um dia, uma colega lhe presenteou com uma sacola cheia de frutas.    Disse-lhe que era a fruta mais deliciosa do mundo e exigiu que comesse uma, ali mesmo, na sala dos professores. Angélica tirou um pedaço do pequeno fruto cor-de-terra. Mastigou lentamente. Engulhou. A fruta era doce demais; a polpa crespa e arenosa dava uma agonia na ponta da língua. Como era enjoado o sapoti! Que decepção!


Ana Maria Rosa (2011)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

DÈJÁVU








Ia passando por uma rua próxima, quando sentiu o desejo irresistível de rever aquela casa. Parou o carro e deixou que suas pernas a levassem à rua das mangueiras. Era melhor voltar – uma mulher de trinta anos parecendo uma adolescente – iria apenas passar como quem não quer nada, só para dar uma olhada. De longe, avistou a casa amarela. Parou tentando recuperar a respiração. Ainda havia tempo de voltar. Seu corpo impulsionou-se até o número 25. Quedou-se observando: a fachada imponente, a porta entalhada, o muro de pedra, o jardim de rosas, a grade alta...  Em que momento tudo se acabara? Antes, entrava sem se anunciar, agora não podia sequer tocar a campainha. Precisava desistir. Dobrou a esquina e viu o portãozinho do quintal, aberto. Olhou para os lados e entrou.
 Experimentou o trinco da porta da cozinha. Arrodeou a casa, viu uma janela aberta. Volte, Marina, volte... Escutou o silêncio da casa, o coração aos pulos. Estava louca. Uma mulher casada com um deputado, mãe de dois filhos – escondida – espreitando o interior de uma casa!  Assomou a cabeça à janela e viu a sala de jantar parada no tempo: a mesa grande, as cadeiras de veludo verde, os quadros, o lustre. Apenas as cortinas eram novas – cor de vinho. Mulherzinha de mau gosto! Fechou os olhos, calculou a altura da janela – como da primeira vez que dormira com ele – agarrou-se ao parapeito e pulou.
Ouviu o chuveiro e a voz dele vinda de longe – Quem é?
Entrou no quarto, escondeu-se atrás da cortina, ficou a espiá-lo – belo e viril – enxugando o cabelo. Ouviu a ordem – Marina, saia daí!
Marina fundiu-se ao corpo nu. Sentiu uma mistura de prazer, felicidade e dor. Teve medo de estar sonhando novamente. Desejou morrer: não queria acordar em sua casa, na cama ao lado do marido.