segunda-feira, 16 de abril de 2012

VIAGEM À TERRA DA INFÂNCIA




“Mas me parece certo que a infância só existe quando irremediavelmente perdida. Sua ausência estabelece tamanho vazio que se torna impossível olvidá-la. Vazio que se preenche com os conteúdos da razão, mas que se amplia pela intuição e memória.”

(Bartolomeu Campos)

Era tarde da noite. Só o brilho de umas poucas estrelas iluminava o céu. Eu conduzia o carro por uma estradinha de terra batida. Comigo iam três de minhas irmãs. Foramos à vila para assistir ao casamento de uma prima. Agora nos dirigíamos à fazenda de meu tio Ninim, pai da noiva, onde nos hospedaríamos. Em vão, procurávamos os rastros da comitiva de uns vinte carros, a uns oitocentos metros à nossa frente. Mas as marcas de pneus não existiam. Parecia que por aquela estrada, se andava a cavalo ou, quem sabe, em carro-de-boi. Não havíamos percebido em que momento a larga estrada de cascalho se estreitara e se transformara na estrada recoberta de areia branca. 
 De vez em quando, esperançosas, ligávamos o rádio: não funcionava. Tentávamos informar nosso paradeiro aos primos e pedir ajuda, mas meu celular não tinha sinal, outro descarregava e o próximo não funcionava. Em cada encruzilhada, um dilema: Por onde seguir? A irmã mais velha escolhia o caminho da direita, e íamos parar na trincheira de uma fonte ou numa cerca de arame. As mais jovens estavam perdidas. E eu? Saíra da Matinha há quase meio século, aos sete anos. Não conseguia lembrar direito de caminhos percorridos há tantos anos.
De vez em quando, parávamos a cantoria nervosa para escutar, ao longe, o pio agourento de uma coruja e no mais, era o silêncio. As fazendas pareciam desertas e abandonadas.
Meu carrinho continuava valente, desbravando o desconhecido e iluminando fracamente a noite que nos envolvia como uma capa de baeta. Cada uma de nós tentava reconhecer marcas impressas na memória da infância: a venda de seu Juvenal; a casa de dona Catarina; a fazenda de tio Edgar; o caldeirão de Zé Preto, o açude de Vavá... Mas  nada. Tudo parecia mudado, estranho, diferente.
 A noite avançava fria e misteriosa. Seus fantasmas gasosos esvoaçavam em torno de nós, e a penumbra nos envolvia. A lua pequena e redonda pouco iluminava o caminho, e cheguei a suspeitar de que ela se escondesse entre as nuvens sempre que a estradinha penetrava no matagal. Valei-me, Nossa Senhora! – eu suplicava em silêncio.
O tempo voava – diziam nossos relógios, implacáveis – mas o mundo inteiro havia parado. Sem luz acesa, choro de criança ou gemido de idoso, as casas pareciam desertas. Nas vendas não havia, por baixo da porta, uma réstia de luz que indicasse movimento de jogo. Nem as folhas se mexiam. Tudo parecia etéreo e irreal, como se fosse o cenário de um filme de terror.
  Num galho de baraúna, os faróis iluminaram uma coruja silenciosa e preocupada. Diminui a marcha, contente de avistar um vivente. Tentei conversar, na esperança de alguma pista. Indiferente, soltou um pio e debandou num vôo desordenado, como se também estivesse perdida. Ao longe, pareceu-nos que gargalhava de nosso infortúnio.
De repente, a estrada se bifurcou. Assustadas, percebemos que já havíamos passado da entrada da fazenda. Não vimos a cancela! O jeito era voltar ou seguir em frente tornando a viagem ainda mais longa.
Verifiquei o combustível, e decidimos continuar em frente. Chegaríamos à fazenda pelo lado oposto. Esse caminho era conhecido: por ele, chegaríamos a nossa antiga fazenda. Essa certeza nos acalmou um pouco.
Logo comecei a reconhecer aquelas paragens. Num impulso, estanquei o carro para observar melhor. Estamos, chegando à fazenda Paratigi – afirmei com convicção. Olhei em volta, extasiada. Tinha certeza de estar pisando em território de fadas e dragões. Estávamos muito perto do Sobrado. Minhas irmãs, nervosas, discordavam. Era impossível havermos feito uma volta tão grande. Então havíamos passado pela fazenda de tio Edgar e pelo açude sem reconhecê-los?
Prossegui lentamente até avistar um terreno amplo e circular. Com o coração acelerado, gritei: Estamos perto do Sobrado! Nenhuma delas acreditou, mas o carro desceu a ladeirinha e estancou. Dali, avistamos o Sobrado. Sua misteriosa silhueta negra apareceu diante de nós – recortada contra o céu cinzento – envolta em brumas, fantasmagórica, tal qual nos meus sonhos. Um medo antigo me assaltou: o casarão era mal-assombrado; muitos escravos morreram na cafua; um dos donos se suicidara; almas penadas ofereciam tesouros enterrados. Foi um alívio deixarmos o casarão para trás.
         Adiante, era preciso atravessar a pontezinha do rio Paratigi. De longe, vi que estava seco. Parei no alto com o coração descompassado. Carregava comigo a velha imagem do rio: largo, cheio, perigoso. Era desse rio que tinha medo. Tomei coragem e já descia a ribanceira do velho Paratigi, quando percebemos – desorientadas – que não mais existia a pequena ponte! Com certeza, fora destruída por uma enchente. A não ser que estivéssemos atravessando outro trecho do rio. Que noite!
O carro passou, aos solavancos, arrastando-se sobre as pedras maiores. Mal subimos a ribanceira, ouvimos um estrondo. Quando olhamos para trás, vimos – em transe – que o rio enchia rapidamente. O canguçu rugia, escuro, traiçoeiro, barulhento... Era de novo o rio de nossa infância. Ao amanhecer, uma comitiva de cavaleiros iria ver a enchente. Era assim antigamente.
 Depois do rio, era seguir direto até a fazenda Matinha, a primeira fazenda de meu pai. Dali, seria fácil chegar ao nosso destino. Estávamos tão perto! Breve, passaríamos perto da pequena mata que nomeava a região.  Há tempos, soubemos que fora derrubada para o plantio de capim – a nossa mata – com seu riacho amarelo e seu cheiro de orquídea. Na cerração da madrugada, tínhamos a impressão de avistá-la ao longe. Embora continuássemos, às cegas, sem reconhecer os lugares, já não tínhamos medo. Envoltas no manto da noite e na névoa do sereno, cada uma de nós, a seu modo, se preparava para adentrar um território sagrado: a terra da infância. Era para lá que a estradinha de areias brancas nos levava.
 Próximas de nossa antiga casa, sentimos cheiro de velame e de angélicas selvagens. Parei o carro em frente a casa, sob a copa da baraúnas – as mesmas onde brincávamos – fomos recebidas pelo perfume intenso e adocicado dos jasmins, as flores de nosso quintal. O velho casarão silencioso, nos espiava depois da malhada. Era a mesma casa onde havíamos nascido: as paredes caiadas de branco, as janelas azuis, a casa de farinha transformada em depósito, o curral grande, outro menor. Talvez ainda existisse o velho pilão, o fogão de lenha e o tacho de cobre onde nossa mãe cozinhava o requeijão.
 Se pulássemos a cerca, depois da ladeira nos fundos, chegaríamos ao riachinho e nos banharíamos em suas águas escuras.
Não, nós não pulamos a cerca.
         Seguimos para a casa do tio. Íamos as quatro, conscientes de havermos viajado por um reino solitário e inatingível – o reino da infância.
                                                                      
                                                                                     ( Fevereiro de 2008)