segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A PRIMEIRA ESCOLA


Eu queria crescer depressa para freqüentar a escola. Minhas irmãs mais velhas estudavam na prestigiada escola de dona Alcina, uma professora com curso primário completo, que ensinava da primeira à quarta série numa salinha de sua casa.
Infelizmente, isso só aconteceria aos oito ou nove anos; a escola era muito longe, e eu não agüentaria a jornada a pé. As meninas saiam com o raiar do dia e  voltavam à tardinha; levavam o almoço num embornal: farofa de carne seca e um pedaço de rapadura; na volta, traziam a capanga cheia de novidades: flores, frutos do mato, raízes para mezinha, passarinho morto por suas atiradeiras. e uma infinidade de "causos". Chegavam cansadas e famintas, as caras vermelhas e alegres. Comiam na mesa da cozinha, e nós, os menorezinhos, assim como o resto da família, ficávamos escutando as novidades da escola e da viagem: os erros dos colegas, as broncas da professora, pessoas estranhas, animal desgarrado, riacho  cheio, redemoinho, roça de fumo, arrancho de cigano, tudo era novidade. Elas contavam a viagem, e eu viajava de carona,  conduzida pela magia das palavras. De vez em quando, abriam o livro e mostravam em que lição cada uma se encontrava. Ninguém podia tocá-lo, só olhávamos as figuras. Ah, aquele tesouro – um dia – seria meu. Ele já havia pertencido às duas mais velhas, Betinha e Bela, e agora estava com as mais jovens, Dê e Fia; a próxima na linha de sucessão era eu.
Mas não foi assim que aconteceu.
O governo construiu uma escola perto de nossa casa, na fazenda de Neca Leite. Foi inaugurada com honras e farrombas; houve churrasco, cachaça e guaraná.
Tempos depois, as aulas começaram. A escola era uma sala grande com o quadro negro atrás da mesa da professora, carteiras duplas enfileiradas, piso de cimento, portas e janelas azuis, paredes caiadas de branco. Não me lembro do nome oficial; logo ficou conhecida como "a escola da professora Elza". Era assim naquele tempo: a escola recebia o nome de um morto importante, e depois ficava conhecida pelo nome da professorinha.  
No primeiro dia, recebi - encantada - o caderno, o lápis, a borracha, o abecê e a tabuada. Eram o meu passaporte para o mundo da leitura e da escrita. Eu, minhas irmãs e uns cinqüenta alunos formávamos uma classe multisseriada. Alguns tinham um saberzinho, mas a maioria não sabia ler. Logo percebi que não iria ser fácil realizar o meu sonho. Tentava com afinco copiar as letras desenhadas no quadro, mas a professora olhava e me mandava apagar e refazer; o lápis quebrava a ponta; a borracha empretecia; o papel furava... Também não conseguia decorar o nome das letras para dar a lição salteada.
Aos poucos, fui desanimando. Era muito aborrecido ficar ali sentada a manhã inteira. Na escola não havia nada interessante; vida boa tinha o urubu; ele sim podia ir a qualquer lugar onde seu olfato lhe levasse. Bom mesmo seria construir um catavento e correr com o vento; melhor ainda, montar o cavalo-de-pau e passear na mata ali perto. Queria sentir o perfume das flores, comer frutas, ouvir os pássaros e tomar banho de riacho - a maior de todas as delícias. Viajando, matava o tempo até a sineta nos mandar para casa.
Mas, lembro-me de que a pasmaceira da escola foi sacudida por dois personagens inusitados: Amâncio e Terêncio.
O primeiro chegou um dois meses após o início das aulas. Era um rapazote negro e forte, aparentando uns quinze anos de idade. Todos os dias sua chegadaa era anunciada pelo cheiro forte de cachaça e pelo burburinho que se seguia. Até que um belo dia, dona Elza lhe perguntou fazendo pose de séria:
- Menino, tu bebe?
- Eu béba, fessora!
Foi uma gargalhada geral que quase contagiou a professora.  
- Mas tu é muito menino pra beber cachaça!
- É nada, fessora. Eu sô é home!
Novas gargalhadas da claque e outra pergunta de dona Elza:
- Teu pai sabe que tu bebe?
- Craro! Lá em casa todo mundo é pinguço!
- Onde é que tu bebe?
- Eu béba nas venda pelo caminho de casa inté aqui.
- E tu mora longe?
- É no fim do mundo, fessora! A rocinha de nóis é lonjão daqui!
- Então, tu já chega aqui bêbado! Vou te proibir de beber!
- Num faz isso não, fessora, assim eu num venho mais. Sem uma paradinha nas vendas, a viage fica ruim dimais e eu num vô guentá ficá parado nesse acento feito besta!
Rindo disfarçadamente, a professora desistiu. Desde então, o garoto passou a se chamar "Eubéba".  Até mesmo a professora o chamava assim. Durante muito tempo, foi o centro das atenções com seus causos engraçados e sua voz  de bêbado. Só perdeu o prestígio por causa de seu Terêncio.
Foi no começo do inverno, num dia de vento frio e sol morno que ele chegou: Juquinha, um amigo da professora, pediu licença e entrou segurando um saco de estopa com todo cuidado. Ele disse à professora que ali dentro estava o presente prometido há  tempos. Conversaram baixinho, ela olhou o conteúdo e pulou de alegria. Pôs o saco embaixo da carteira e prometeu  nos mostrar o presente no final da aula.
Ficamos contando os minutos e perguntando as horas a Eubéba. 
Passados algum tempo, felizmente, seu Terêncio – que também não gostava de prisão e estava louco para nos conhecer – escapuliu do saco e saiu andando entre nossas carteiras. Tinha o bico grande; era muito feioso; o corpo coberto por uma penugem rosada; parecia um patinho como o tamanho de um frango.
Que bicho seria aquele?
Ficamos extasiados quando a professora nos disse: era um filhote de urubu! Contou-nos que tinha poucas semanas de vida; Juquinha tinha capturado o bichinho no ninho, lá nos confins da mata; não fedia a carniça; não bicava ninguém.
Passamos o resto do ano ao sabor das novidades de seu Terêncio; criou-se a hora do conto; todos queríamos notícias do filhote. A professora nos contava cada dia uma novidade: seu Terêncio comia pirão de leite, batata, abóbora; gostava de banana e goiaba; as penas estavam nascendo; comia milho com as galinhas; subia no ombro da professora; estava tentando voar; roubara um pedaço de carne crua.
Certo dia, ela nos falou (preocupadíssima) que "Neguinho" estava andando em más companhias! Era amigo de uns urubus que havia conhecido na fonte perto de casa! Estavam lhe ensinando a voar! Aqueles bichos fedorentos podiam lhe dar carniça! Seu Terêncio até já estava emplumado e com ares de rebeldia; ia para a fonte sem ela; ia voando!
Pouco antes das férias, a professora, com os olhos vermelhos, deu a temida notícia : seu Terêncio tinha fugido! Há dias vinha se encontrando, todas as tardes, com uma urubuzinha que conhecera na fonte. Quando ficava  preso na gaiola, a atrevida pousava a certa distância, e o namoro olho no olho continuava alcovitado pelo vento. Ela tentou separá-los, mas não conseguiu. Fugiram para a mata ao raiar o dia.
Finalmente, as aulas acabaram. No ano seguinte, mudamos para a cidade; meu pai queria que os filhos tivessem estudo; lá, em poucos meses, eu aprenderia a ler e a escrever; porém levaria muitos anos para aprender a voar como seu Terêncio; ele conduzido pelos ventos e pelos odores; e eu pelos livros e pelas palavras. Mas isso é uma outra história. Depois eu conto.

                          Ana Maria Rosa em 12-05-2001