quarta-feira, 30 de novembro de 2011

GOTAS DE POESIA: ALGUNS POEMAS ANTIGOS




ACRÓSTICO BRINCANTE: PJIVM

Pê de poeta porreta, pintoso, e de primorosa poesia.
Jota de José, jornalista de Jequié, Juazeiro e Jeremias.
I de Inácio - Ignácio - ígneo que invade e inebria.
Vê de Vieira, viril, vermelho vibrante, vulcão e ventania.
Mê de Melo, mago, masculino, mulher, musa e mitologia

Eis um poema brincante
Para dessacralizar  a poesia.
Sou humilde principiante
E me chamam Ana Maria.
 
 
RETRATO DE FILHA

Lua Marina,
Minha filha,
Minha lua,
Pedacinho dourado,
Pedacinho azul,
O melhor de mim.


POEMA 22                        


Havia 22 corpos no chão.
No chão, havia 22 homens caídos.
Em Corumbá, 22 cabras morreram de tiro.
No meio da estrada, 22 corpos ficaram estirados.
Naquele dia, 22 trabalhadores sem-terra caíram atirados.
Num único dia, cada lavrador ganhou sete palmos de chão.
Em 154 palmos de terra, 22 homens foram plantados sem compaixão
                                                            



     O SHOW

O cartaz:
O desejo.

O pai:
O dinheiro,
O ingresso.

O dia:
A arrumação,
A ansiedade.

A ida:
O ônibus,
O engarrafamento.

O estádio:
A multidão,
A expectativa.

A música:
A dança,
A vibração.

O fim:
A volta,
O vazio.


UNO


Uma foto:
uma criança,
um menino,
um indiozinho,
um ser.
Você e eu.
Todos nós



POEMA DO MAR

                                Azul,
                           Azul,
                     Grande,
                Enorme,
                   Imenso,
                         Infinito Mar.
                             Verde,
                                 Verde,
                                      Belo,
                                         Liquido,
                                             Manso,
                                                 Misterioso Mar
                                                    Cinza,
                                                  Cinza,
                                                Frio,
                                          Forte,
                                     Salgado,
                                 Violento Mar.
                           Negro
                       Negro,
                    Fundo,
                      Escuro,
                         Profundo
                             Perigoso Mar.
                                     Azul,
                                           Verde,
                                                 Cinza,
                                                      Negro,
                                                           Grande,
                                                                 Belo,
                                                                      Frio,
                                                                          Fundo,
                                                                                Eterno Mar.

                                                                                     Ana Maria Rosa maio de 2009.




CARTA PRA MARIA

Maria, ocê é unha prefessora danada de porreta
e sua prosa incantada me fei pegá a caneta
pra lhi falá de um presente tirado de minha gaveta.

Ele veio de longe
veio lá do velho Adro
viajô seis léguas e meia
e está um pouco amassado.

É unha coisa piquena
qui tarvez nem se note,
mai foi o qui pude trazê
já qui num sô muié de posse.

Cumade, ocê tá cum pressa!
Ôchente, vô acabá a surpresa!
É unha cocha de retaio imendada com distreza
Parecida com ocê qui tamém é unha beleza.

Cada retaio desse é sobra de vistido,
qui podi sê dum istranho ou dum ente quirido.
E cada taquim de pano desse pano colorido
traz cum ele unha história e um carinho repartido.

Quem custurô foi mãinha,
muié ligera e prendada,
qui vai ficá toda prosa
agora qui seu trabaio
vai incantá unha fada.

Amiga Maria, esse cobertô
num é coisa fina não,
porém ele tapa o frio
e tem a cara do sertão.

Ispero que esta lhi incontre
cum saúde junto ao seus
nessa linda Rio de Janero
abençuada pur Deus.



segunda-feira, 28 de novembro de 2011

HERIVELTON FIGUEREDO: um artista contemporâneo


Há muitos anos, ouço falar nesse artista feirense e algumas vezes tive a oportunidade de ver uma exposição sua. Eu passava, olhava intrigada e ia embora sem saber o que pensar.
Hoje, por causa desse infinito mundo on line , onde cada um de nós vai deixando uma pegada aqui, outra ali, tenho observado o trabalho desse cara. Continuo inquieta, mas começo a me familiarizar com seus símbolos (ou com aquilo que imagino estar vendo): ossos; pedaços de ferro; seres extraterrestres; fontes; cavernas; estalactites pendendo do teto até o chão ou seriam estalagmites partindo do chão até o teto? Um homem num canto da tela?  Certamente, delicadas libélulas com suas asas transparentes, tão tênues, tão frágeis; as abelhas, pequenas operárias zumbindo onipresentes em seus quadros; às vezes uma rainha fugitiva pousa ali sobre uma superfície transparente, talvez a me lembrar a doçura do mel, ou um vôo rasante em campo florido. Não sei.
Vejo Herivelton como um artista de seu tempo procurando expressar suas visões. Visões que eu tento captar na transparência de suas abelhas e em cada rasgo de luz de seus desenhos.

UMA PEQUENA LAÇADA AZUL: apresentação de uma autora-mirim

Hoje, quero apresentar a vocês, leitores, a primeira história de Camila Figueiredo. Essa menina de nove anos escreve com letra esgarranchada e ortografia ruim. Mas, há em seus escritos, a criatividade e a tessitura que prenunciam o surgimento de uma aprendiz da arte da palavra.
Mila, minha sobrinha neta, possui em seu caderninho espatifado, mais de dez histórias produzidas em pouco mais de uma semana. Li todas elas e, em todas, encontrei – entrelaçados – os fios  mágicos que caracterizam os contos de fadas e, arrematando-os, uma pequena laçada azul onde se percebe que a autora-mirim têm consciência do poder transfigurador da “palavra-arte”.
Por isso escolhi  “O Baú Mágico de Isadora” para apresentá-la; nele, Camila nos revela a descoberta do livro e do poder encantatório das histórias. Isto fica claro, no quarto parágrafo, com a analogia baú-tesouro-livro-mágica.
Assim que li os textos,telefonei para lhe informar que corrigiria a ortografia e publicaria uma história sua em meu blog. Aproveitei para perguntar-lhe como se sentia quando estava escrevendo; a menina do 5º ano, que lê bastante e não vai bem nos estudos, respirou fundo e me respondeu: alegre e feliz.
Eis aí uma boa resposta da pergunta: “Para que serve a Literatura?”
Serve, entre outras coisas, para nos trazer alegria e felicidade>



BAÚ MÁGICO DE ISADORA

Isadora era uma menina muito sapeca e divertida. Um dia, encontrou uma senhora idosa e cansada carregando um baú. Então, a menina ofereceu:
- Quer um pedaço de pão, minha senhora?
- Obrigada, criança. Tome esse baú e fique com ele.
Ela agradeceu e foi para casa arrastando o baú. Abriu e encontrou um monte de livros. Pegou um, entrou no baú e começou a ler. O livro abriu a porta para um mundo mágico. Na verdade, aquela senhora era a fada dos livros! Isadora, naquele Natal, ganhou do Papai Noel um livro com 366 histórias. Ela leu, no baú, por 366 dias. E como a menina amou esses dias!
Essa é a história de Isadora e de seu baú mágico. Aguardem as próximas histórias.
               
                                                       Camila Figueiredo (28-11-2011)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

TICA E NICK: O RAP DA GATINHA




                                              (A tia Rita que amava os filhos, os gatos e as sobrinhas)


Numa noite enluarada de cantoria e serenata,
Nick encontrou Tica, uma tremenda de uma gata.
Pois é, que lindo!

Os dois iniciaram um namoro apaixonado,
E, daí a alguns meses, apareceu o resultado.
Pois é, que azar!

A bela Tica engravidou e ficou muito pesadona,
 E Nick, o salafrário, arranjou outra bonitona.
Pois é, que malandro!

Quando os gatinhos nasceram, a mãe ficou sozinha,
Pois o pai, quando vinha, só fazia uma visitinha.
Pois é, que irresponsável!

Tica, muito braba, decidiu resolver aquele caso,
Não ia perder seu gato e ficar sem namorado.
Pois é, que esperta!

A gatíssima se enfeitou, foi atrás do bonitão
E, se esgueirando de mansinho, foi entrando na mansão.
Pois é, que coragem!

O bicho farejou o perigo e se escondeu embaixo da escada,
Pois se alguém visse a pedura, ela levaria umas vassouradas.
Pois é, que ordinário, meu!

Tica achou o gato no tapete embaixo da cama,
Ele estava nervosinho e alegou medo da dona.
Pois é, que covardão!

Nick acalmou a gata, prometeu fidelidade e jurou amor eterno;
Iria morar com ela, assumir a filharada e virar um gato sério.
Pois é, que responsa!

Tica ficou em casa esperando até perder a paciência;
Um dia, pegou os filhos e foi resolver a tal pendência.
Pois é, que tigresa!

Deixou os pequenos no jardim, escondidos num cantinho,
Mas a dona da casa os achou e se derreteu pelos bichinhos.
Pois é, que sorte!

A gatona, muito esperta, se instalou com a filharada;
Arrancou o malandro do quarto, já com pose de casada.
Pois é, que danada!

O bichão, sem argumentos, evitou o diz que diz;
Assumiu sua ninhada e tratou de ser feliz.
Pois é, felizes para sempre!

Agora a gatarada, vive junta na mansão,
E assim termina a história e também a confusão.
Pois é, felizes para sempre.

                                                  Ana Maria Rosa em 2007

sábado, 12 de novembro de 2011

Comentário de Leitura: Uma dose de cafeína

  Conheci o autor Victor Mascarenhas na Flica (Feira Literária Internacional de Cachoeira): espirituoso, irônico, debochado... Sua mesa (um bate papo escrachado com Reinaldo Moraes sobre as histórias de ambos) foi a mais divertida. Comprei o livro CAFEÍNA e li todos os contos num fôlego só. Quando gosto de um livro, faço isso: devoro e, depois, fico ruminando... Faz quase um mês que reli as histórias, e certos personagens ainda rondam à minha volta: o homem que passa a noite num táxi, a rodar sem destino; o garçom, desesperado, preso no circuito fechado de sua vidinha; o gordo e perverso leão-marinho que não recebe compaixão (do autor ou da leitora) nem mesmo à beira da morte; o porteiro temente a Deus que resolve ir para o inferno num vôo de vinte e sete segundos. Relembro, especialmente, as três personagens femininas: a puta, retratada com humor sarcástico, “dando ao negão” em troca de um cafezinho; Rita, a ascensorista, cujo universo resume-se ao elevador; e Celeste, a pobre velha, um zumbi vagando num mundo de não-lembranças. Essas duas últimas mulheres – destroçadas pela solidão – são seguidas pela lanterna de Victor com luminosidade suave e, talvez por isso, emergem do livro de forma mais comovente.
Os personagens eleitos por Victor, assim como sua escrita ágil e cortante ,me fazem lembrar dois autores em especial: Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. Se você costuma ler as histórias do “Vampiro de Curitiba” e do “Ex-policial-escritor”, já está um pouco preparado para adentrar o território dos “zumbis” do baiano Victor Mascarenhas, o cara que “sabe derramar sal na ferida das vidas vazias” como disse Fausto Fawcett no prefácio de Cafeína.

Estandarte vermelho: um convite de leitura

Convido você a adentrar o território selvagem da poesia de José Inácio Vieira de Melo. Mas, vá preparado, companheiro, porque é o próprio poeta quem diz assim: “Minhas palavras ardem a forjar/ estas flores que canto por prazer/ e que dão febre e fazem delirar.” Pensemos assim: antes de abrir as primeiras páginas ou ouvir os primeiros versos, você será um rio calmo e de pequena correnteza. De repente, escuta um estrondo: é a poesia de JIVM irrompendo rio abaixo. Como uma cabeça d’água, ela vem rolando pedras, arrancando cercas, algarobeiras e mandacarus. É o Centauro Escarlate trazendo mulheres, e sereias, e éguas, e rosas, e pássaros, e bois, e cavalos... e vaqueiros. Quando tudo passar, espere que as águas assentarão, mas você estará diferente, como se ainda corresse pelo Sertão e, ao mesmo tempo, se avizinhasse das terras do oriente, enquanto  escuta um aboio ou um cântico longínquos.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Uma crônica e meu comentario de leitura


CONGO


Tua alma, minha amiga, é como a Bélgica suavizada de canais, mas a minha é como o Congo violentado, duma liberdade malnascida. Miséria  misteriosa de meu sangue,  suor negro de minha morte, martírio milenar de minh’alma, meu amor. A Bélgica é como a tua alma suave. O Congo é tumulto impenetrável, floresta de lama, felino ferido. Estou ao Norte, ao Sul, a Leste, a Oeste, crucificado em províncias paralíticas, em subúrbios de barro, onde se arrastam bestas mal abatidas, mulambos de Lisala, senzalas de Lusambo, Usumbara profunda com seu zabumba fúnebre, Inongo, Malonga – minha’alma. Mas a tua é suave de canais. Um crime se articula na aldeia petrificada, um guerreiro de lança percorre o vale ardente. Mas em tua alma, minha amiga, há um príncipe melancólico pendido para o crepúsculo. No Congo, violência, vingança, o ídolo vestuto que se estraçalha, o pântano de sangue, o voo do corvo, o rio da raiva, a garra do belga, a madrugada de carvão, a cova de Cristo, a luz de Lumumba. Na Bélgica, a suavidade dos canais, meu amor.
_________________________________________________________
Paulo Mendes Campos em O amor acaba – crônicas líricas e existenciais.





Quero partilhar com vocês um relato de leitura que escrevi em 2007 quando fazia um curso de três dias sobre crônica. No segundo dia, folheei o livro de referência até o final e lá estava ela - a crônica de Paulo Mendes Campos,  - me esperando: CONGO.  Estranho nome... Entrei de coração aberto em seu território selvagem. Sua poesia "me pegou de jeito".  Li num fôlego só. Fiquei meio zonza. Tive um sentimento de estranheza e beleza. Meu coração batia forte tum-tum, tum-tum... O tempo inteiro uma parte de mim perguntava o que estaria acontecendo. Reli, falando baixinho aqueles "mês"... depois os "ans", "ons" e "uns"... Esses sons me pareciam um mantra. Ou seriam tambores? Batiam ali no texto? Ou seria na selva? “A garra do belga” me deu nova pista: o Congo fora colônia belga! Li outra vez. Minha parte que pergunta calou-se. Senti-me levada para uma selva escura e verdejante. Havia gorilas, guerreiros negros, sangue e lama... Vi também muitos homens loiros atirando com armas de fogo. Lá longe - separada pelo mar - uma terra recortada por canais. E ali estava ela: a mulher suave...
Busquei a análise do texto, ávida para testar minhas suposições. Outras surgiam. Então, eu, leitora mais preparada, observei as metáforas, as aliterações, os contrastes, a rede de significados... os sons surdos de tantos "vês" no final do texto.
Encerramos aquela aula com uma leitura dramatizada: eu - o Congo - fiz a voz fúnebre da zabumba; e a colega loirinha - a Bélgica - fez a voz suave dos canais... Só nos faltou um tambor...
Olha, se ao ler o texto, a poesia também "te pegar de jeito", sei que você compreenderá meu fascínio total por ele. Se ela não te pegar, é porque uma certa porta está fechada, e você - por alguma razão - não escutou o batuque dos tambores...



* Hoje, ao reler o texto, achei que a palavra CONGO reproduz duas batidas de tambor: CON-GO...CON-GO...




Um principe em nossa casa


Ele tirava fotografias. Tinha uma câmera portátil moderna e bonita; não uma máquina com pernas de pau e uma tenda onde o fotógrafo enfiava a cabeça para bater a foto como seu José Retratista, o único fotografo que eu conhecia. Também não era velho como esse. Ele era jovem, diferente, parecia um príncipe.
Era tarde da noite quando ele chegou acompanhado da mulher. Explicou que seu carro havia quebrado perto de nossa fazenda e pediu  para passar a noite em nossa casa.
No outro dia, acordei cedinho e fiquei sabendo dos visitantes. Falaram que ele queria tirar uns retratos nossos. Há muito, eu conhecia de nome; heleno. Era filho de um rico fazendeiro da região – gente fina e viajada – havia morado na capital por muitos anos, onde fora estudar para ser doutor. Diziam que era muito inteligente e sabia muitas coisas sobre doenças e bactérias, porém não possuía o sonhado diploma de doutor. "Tinha ficado maluco de tanto estudar. Que pena! Coitado, um rapaz tão bonito e educado!" As pessoas comentavam isso em voz baixa, penalizadas. Heleno abandonara a faculdade, casara-se com uma moça da cidade grande e, agora, estava vivendo na roça com os pais. Diziam que não se interessava pela fazenda; passava o dia inteiro fotografando plantas, bois, passarinhos e até insetos; e, à noite, costumava se trancar num quarto escuro para fazer as revelações.
Assim que tomei um copo de leite cru na cozinha, corri para a sala de visitas, ansiosa para conhecer o fotógrafo amalucado. Será que era perigoso chegar perto dele? Avistei-o junto à janela ajeitando a máquina fotográfica. Fiquei no batente da porta, quietinha, observando-o... Desse homem, me ficou na memória, um retrato esmaecido que, agora, tento reproduzir com palavras.
O moço era alto e magro. Usava sapatos pretos lustrosos, calça verde-escuro e camisa branca de mangas compridas, com os punhos um pouco dobrados. Havia um quê de nobreza e de elegância em seu porte. Observei-lhe as mãos finas, os dedos compridos colocando as pilhas com habilidade. Na mão esquerda, a aliança bem larga e, na direita, um anel de ouro com uma pedra escura. Aproveitei sua concentração para lhe observar o rosto moreno-claro. Era um rosto belo, embora um pouco pálido, rosto de poeta romântico. Tinha nariz afilado, olhos claros sombreados pelos cílios compridos e sobrancelhas bem desenhadas, quase femininas; cabelo escuro e brilhante, penteado para trás, com uma mecha onde se destacavam prematuros fios brancos caindo-lhe na testa. O moço bonito exalava um cheiro bom de lavanda e de sabonete que denunciavam o banho recente. Banho de manhã cedo! Não parecia um louco, parecia um príncipe com aquele delicado perfil recortado na claridade da janela onde ele se encostara.
Heleno percebeu minha presença e se virou com a máquina apontada para mim. Por uma fração de segundos, vi-lhe um meio-sorriso e um brilho de curiosidade nos olhos esverdeados. Não lhe dei tempo de tirar a foto. Fugi, envergonhada, para a cozinha. Se ele tivesse batido a foto, talvez tivesse captado o meu "olhar de menina espiã" – assim definido por minha mãe – ao me reclamar por deixar as pessoas embaraçadas de tanto olhá-las com insistência.
Mais tarde,  me deixei fotografar com meus irmãos. Enquanto ele fotografava meus pais, o vaqueiro, os bois, os arredores e as outras crianças, a mulher ficava o tempo inteiro por perto cercando-o de cuidados. Não me lembro de sua fisionomia, mas guardo uma vaga recordação de que era alta e clara. Era ele quem me interessava. Seguia, com o olhar, sem perder nenhum de seus movimentos. Não sei se era maluco, sei que era triste, muito triste. Havia algo comovente em seu rosto pálido, em seus olhos indiferentes e até em sua elegância descuidada.
Nunca mais voltei a vê-lo ou soube notícias suas. Porém o retrato – em preto e branco – daquele belo príncipe desencantado, ficou guardado em meu baú da memória para sempre.

(março de 2006)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

DEJÁ VU


Ela ia passando por uma rua próxima, quando sentiu o desejo irresistível de rever aquela casa. Mudou de trajeto, parou o carro adiante e caminhou, célere, até a rua das mangueiras. Parou quase em frente ao número 25 e ficou observando a casa: continuava pintada de amarelo, as portas envernizadas, o telhado baixo, o muro de pedra, a grade alta, o portão de madeira... o jardim de rosas. Ficou longo tempo olhando aquela casa e relembrando tantos momentos felizes vividos ali. Em que momento tudo se acabara? Antes, ela entrava sem se anunciar e agora não podia sequer tocar a campanhia. Até mesmo ficar ali, parada olhando, era arriscado. Se um dos donos da casa aparecesse no portão ou mesmo na janela, fria papel ridículo e pior ainda, seu segredo seria descoberto. Decidida, foi embora. Era uma mulher de trinta anos e estava se comportando como uma adolescente. Mas, ao dobrar a esquina, viu que o portãozinho do quintal estava aberto. Olhou para os lados e entrou feito uma ladra. A porta da cozinha estava fechada; experimentou o trinco e nada. O melhor era voltar antes que fosse tarde, mas suas pernas insistiram em arrodear a casa. As janelas estavam abertas. Ficou escutando; não ouviu nenhum barulho. Aquela podia ser sua única chance de entrar aquela casa onde tantas vezes voltara em imaginação e em sonhos. O coração batia loucamente e a boca estava seca de medo. Ainda havia tempo de desistir; não teria coragem de se arriscar tanto entrando por uma janela. Que papel ridículo, uma mulher de sua posição, escondida no canto da parede, espreitando o interior da casa dos outros! Cuidadosamente, assomou a cabeça à janela e olhou para dentro da sala de jantar. O tempo parou. Viu-se naquela mesa comprida, sentada junto dele a lhe servir o jantar que ela mesma preparara. Viu-se de novo do lado de fora calculando a altura da janela como fizera há muitos anos, quando pulara a janela do quarto dele para lhe fazer a surpresa de passarem a noite juntos. Com um impulso, agarrou-se ao parapeito e pulou para a sala. Tudo ali continuava igual: a mesa, as cadeiras, o guarda louça, os quadros, o lustre...  Diferente eram as cortinas cor de vinho Só aquela mulherzinha de mal gosto poderia usar cortinas daquela cor. Foi à sala de visitas, examinou o tapete espalhafatoso, a mezinha de mármore com a mesma rachadura e o sofá antigo, agora com forro de tecido igual ao das cortinas, tudo de cetim cor de vinho. Tantas vezes sonhara em comprar móveis novos, colocar cortinas leves e um tapete persa. Se precisasse, contrataria um decorador para ajudá-la a escolher os objetos, os quadros, a cor das paredes... Seguiu pelo corredor. Agora que estava ali, iria até o fim. Quando se aproximou do quarto das crianças ouviu o barulho do chuveiro vindo da suíte no fim do corredor. A outra estava no banho! Ainda havia tempo de bisbilhotar mais um pouco, mas o chuveiro foi desligado e ela se preparou para fazer, em pânico, o caminho de volta. Já se preparava para pular a janela, quando ouviu um espirro, seguido da pergunta: Tem alguém aí? Era ele!. Há quase oito anos não o via, a não ser uma única vez quando ele esteve em sua cidade, e ela passou a tarde inteira  na varanda, só para vê-lo passar e ganhar um breve aceno. Como sofrera por dias e dias por continuar vivendo longe daquele homem. Entrou no quarto sorrateira, escondeu-se atrás da cortina e esperou ele aparecer. Enxugava o cabelo com a toalha e estava nu. Não mudara quase nada: o corpo continuava rijo. o rosto ficara mais belo. Correu para seus braços. A mulher viajara com os filhos e, se o marido dela não viera, podia passar a noite ali.  Passaria a noite com ele e depois voltaria para sua vidinha morna.


                                                     

domingo, 6 de novembro de 2011

LEITURA: UMA VIAGEM NO TEMPO E NO ESPAÇO

                                

                                
Outro dia participei de um curso de leitura para professores. Uma das atividades propostas foi que produzíssemos um texto contando nossa história de leitura. Fiquei sem saber por onde começar. Começava falando do fascínio pela palavra escrita? Começava pelos primeiros livros que li? Ou imitava Paulo Freire no texto "A importância do ato de Ler" e falava primeiro da leitura do mundo? De repente, veio-me a inspiração: eu começaria pelas primeiras histórias que ouvira quando criança.
Acho que tudo começou com as histórias contadas por minha mãe e por Betinha, a irmã que me criou. De vez em quando, elas cediam às nossas súplicas e faziam uma noite de contação de histórias. Até hoje, recordo-me de algumas: A Festa no Céu com aquela cena linda de Nossa Senhora enviando anjos para remendarem o casco do jabuti; uma do coelho que conseguiu selar e montar uma onça e assim ganhar uma aposta; outra de uma menininha que foi raptada por um velho malvado e ficou presa em seu surrão por muitos anos. Essa era contada por minha mãe. Ela imitava, pesarosa, a vozinha da menina cantando de dentro do saco preto em cada porta onde o velhote pedia esmolas "Surrão triste, surrão de morrer / Minhas continhas de ouro que no rio deixei"... Realmente era uma história muito triste, apesar do final feliz. Mas eu achava linda a voz de minha mãe contando histórias. Era bom tê-la em nosso quarto, sentada em nossa cama, a falar com voz meiga, tão diferente da voz que ralhava conosco por qualquer razão. Havia ainda a magia do cenário: o quarto comprido envolto na penumbra; o rosto da contadora iluminado pela chama fraca do candeeiro a gás; nossas sombras se projetando fantasmagóricas na parede; o calorzinho das colchas de retalhos; o eco das vozes dos bichos noturnos ressoando no silêncio do aposento...
Mais tarde, vieram outras histórias que falavam de tesouros enterrados, de almas penadas, de serpentes com olhos de fogo e de seres encantados da mata: saci, caipora, lobisomem... Outras eram relatos de viagens cheias de perigosas enchentes, travessias em rios caudalosos, perdas de gado... Essas eram histórias masculinas. Eram contadas pelos homens. Os contadores eram meus tios, os vizinhos, os ciganos e os boiadeiros que arranchavam em nossa fazenda e, logicamente, meu pai. Eu adorava essas histórias, pois eram os próprios personagens (os heróis) que as narravam.
Meu pai era um experiente contador dessas "histórias reais." Ele começou a vida – ainda menino – como tropeiro. Com orgulho, nos falava que vendia farinha, no lombo dos burros, nas cidades do Recôncavo. Só mais tarde, ele se tornaria fazendeiro e expandiria suas andanças por todo o sertão da Bahia e até o estado de Goiás. Lá, ele comprava e vendia boiadas com dinheiro vivo ou com a força de sua palavra de honra – palavra de rei – como dizia em suas narrativas.                                                                                  
Suas histórias deixaram em mim a imagem nostálgica de cidades como Ibotirama, Lençóis, Correntina... Maragogipe, Cachoeira, São Félix... Essas últimas imantadas pela magia do mar e das enchentes. Elas eram o cenário de seus "causos" dos velhos tempos de tropeiro. Eu os escutava de olhos arregalados imaginando como seriam as ruas calçadas, a feira livre e, principalmente, um "mundaréu de água verdinha" – o mar. Muitos anos depois, conheci algumas delas, e em todas, senti aquele sentimento meio esquisito de "dèjá vu" – quase uma saudade.
Essas histórias masculinas eram contadas ao pé da fogueira acesa na malhada, território de homens e de animais. Nós, as mulheres, nos sentávamos nos bancos do avarandado. Minha mãe ficava um pouco ressabiada quando um grupo maior de boiadeiros estava pernoitando na fazenda e preferia manter as filhas à certa distância desses homens rústicos. Ainda posso relembrar a lua cheia no céu, os sons peculiares dos animais na mata, o gado ruminando no curral, as perneiras e gibões de couro pendurados. Mesmo agora, ainda posso sentir o cheiro dos cigarros de palha, dos couros suados e do esterco de boi misturados ao perfume do velame – cheiros agrestes – sensuais perfumes em minha memória de mulher.
Foi assim que nasceu a minha paixão pelas histórias. Porém, para gostar de ler, é preciso amar o papel e, principalmente, a palavra escrita. Estes eu viria a amar depois, cada um a seu tempo, apesar de certas condições adversas.
Digo adversas porque em minha casa não havia livros. Exceto o intocável livro didático de minhas irmãs, que ia da primeira à quinta série e era passado de uma para a outra, até mesmo papel impresso, estampado ou colorido eram raros lá na roça.                                                                                                                                            Se conseguia um papel desses, recortava figuras de bois, de pessoas e principalmente de patos (os mais fáceis de desenharem para mim). Sentada no chão, enfileirava essa bicharada nas paredes do corredor e ficava o dia inteiro brincando. Os adultos achavam engraçado uma menina conversar com figuras de papel. Eles não sabiam, nem eu – pois só descobri ao escrever estas palavras – que aquelas paredes com figurinhas de papel eram os meus primeiros livros. Eu estava criando minhas primeiras narrativas. Acho que ali nasceu o meu desejo de ser "a dona da história”.
Contudo, um belo dia, (Eu devia ter uns cinco anos.) Betinha chegou em casa com uma grande novidade: uma sacolinha cheia de livros. Eram pequenos e traziam, na capa, desenhos de traços fortes como se fossem feitos a carvão. O vizinho (tio Nonô) que emprestou os livrinhos, explicara que eram vendidos na feira; ficavam enfileirados num cordão; eram chamados de "cordel" justamente por isso. Naquela tarde, minha irmã sentou-se na sala de visitas e leu para uma audiência embasbacada, uma história em versos que parecia uma música. Escutei-a tão deslumbrada, que até hoje me recordo de sua primeira estrofe. Era assim:
"Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso
Que levantou vôo da Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso."
E sua capa era tão linda: um pavão imperial com a calda aberta. O desenho era feito com uns traços grossos como se tivessem usado um carvão para desenhar. Acho que o enredo era mais ou menos esse: Havia num país distante, chamado Grécia, uma jovem condessa de rara beleza. Ela vivia trancafiada no castelo de seu ciumento pai. Apenas uma vez por ano, no dia do seu aniversário, o conde lhe permitia mostrar-se à janela do salão de festas onde, é claro, jamais aconteciam festas. O pai não dava um baile para comemorar o aniversário da filha desde que ela deixara de ser criança para tornar-se uma belíssima mulher. Esse acontecimento trazia àquela cidade grega, rapazes do mundo inteiro, atraídos pela possibilidade de contemplar uma lenda - a mais bela mulher do mundo. No aniversário de dezoito anos, um jovem que a conhecia por uma fotografia - presente de viagem do irmão mais velho - passou o dia inteiro, olhando a mocinha apaixonadamente. No final da tarde, ela lhe deu um sorriso, e ele teve certeza de que fora escolhido; ela se apaixonara por ele. Então, o jovem alugou um sobrado próximo ao palácio e, na água-furtada, mandou um engenheiro construir – secretamente – um aeroplano em forma de pavão. Passado um ano, na noite do aniversário da condessinha, o pássaro levantou vôo, e o moço bonito raptou a donzela. O pai, desesperado, nada pode fazer; só teve tempo de avistar o bicho afastando-se do castelo; ia com a cauda aberta em leque, repleta de luzes acesas e tão coloridas como as penas de pavão
Aquelas estranhas palavras "aeroplano"... "pavão-misterioso"... "água-furtada"... "castelo"... "Grécia"... tão sonoras, tão belas, lançaram sobre mim sua magia encantatória. Eu as ficava repetindo baixinho com medo de que elas voltassem ao seu esconderijo secreto – dentro do livro – antes que pudesse decifrá-las. Quando Betinha disse "e foram felizes para sempre", saltei das asas do pavão misterioso e deixei de ser condessa. Agora eu era, outra vez, uma menina da roça – uma nova menina... Havia descoberto uma coisa fantástica, uma coisa maravilhosa: as histórias moravam dentro dos livros!!!
Depois daquela tarde, minha irmã vivia agarrada aos livrinhos, porém raramente lia uma história para nós. A cruel mágica lia, silenciosa, só com os olhos. Não adiantava eu, choramingando ajoelhada ao pé de sua cadeira, implorar por uma história. Então, ficava em pé atrás de suas costas, com o pescocinho espichado, tentando inutilmente, decifrar aqueles caracteres negros ... Ela se irritava e me obrigava a voltar ao cavalo-de-pau, às caçadas de lagartixa, ou ao quizungue pendurado no pé-de-laranjeira. Eu que fosse crescer e aprender a ler!
Não demorou muito, fui para a escola. Era uma sala de aula na fazenda de meu tio. Era a minha vez de aprender a ler. Logo, logo, estaria lendo histórias. Doce ilusão! Passei um ano inteiro naquela classe multiseriada tentando aprender o "abecê". Só aprendi as letrinhas da primeira fila. Acho que a inexperiência da professora leiga, a superlotação da sala e a insipidez do "abecedário" contribuíram bastante para esse meu fracasso.
No ano seguinte, meus pais se mudaram para a cidade de Santo Estevão, que fica a mais ou menos 220 km da capital, Salvador. Deixaram a fazenda para "dar estudo aos filhos”. Meu pai não conseguiu nenhuma vaga no "grupo escolar". É, naquele tempo, só havia ali uma única escola primária - respeitadíssima pelo profissionalismo dos mestres e pelo ensino de qualidade - o Grupo Escolar D. Pedro I. Ali estudavam os filhos das famílias gradas do lugar, misturados a um número menor de crianças oriundas da classe popular.                                              
Enquanto aguardávamos uma vaga, fomos matriculados – somente os mais novos – "na banca da professora Nade". Minhas irmãs de nove e de doze anos seriam preparadas para  cursarem a terceira série; eu, com oito anos, e meu irmão com seis, nos prepararíamos para a primeira série. Nessa banca supervisionada pela professora Nade – delegada escolar do município – aprendi a ler "soletrado"; saí sabendo escrever o meu nome completo e mais um saberzinho matemático de soma e de subtração.
Após esse período preparatório, fomos para a escola regular. Minha professora, recém-contratada pelo Estado, era a mesma da banca – a doce professora Ridalva – sobrinha de professora Nade. Não demorou muito, comecei a ler (os livros didáticos) com desenvoltura. Graças a essa aptidão, passava de ano sempre com boas notas; tirei o primeiro lugar no terceiro ano; dele pulei diretamente para o quinto ano, o último do antigo curso primário. Por causa desse feito, ganhei um presente de minha saudosa professora Maria Lúcia Lobo. Fiquei radiante; nunca havia ganhado um presente; era um livro de histórias, o meu primeiro livro de histórias.                                                                                                    
Mas assim que desembrulhei a caixinha, veio a decepção: era um livro minúsculo e de poucas páginas; dentro dele, havia uma historinha com alguns desenhos sem graça e pouquíssimas palavras. Ao chegar em casa, li a 'história" da plantinha carnívora em trinta segundos. Muitas vezes li e reli essa história; tentava encontrar algum significado nela. Não tendo conseguido, guardei o livrinho como um objeto comum – uma lembrança da professora Lu. Por que será que aquela mestra que me fez saltar uma série não imaginava que eu poderia ler uma história?
Esse desencontro com a leitura continuaria durante toda a minha vida escolar: ora histórias sem graça, ora nenhum livro. Mas, por minha própria conta, continuava lendo os cordéis de minha irmã. Gostava especialmente de um que narrava uma história de amor entre uma princesa e um ladrão plebeu. Até hoje me lembro de que Renê enfrentou três perigos terríveis: a maldição da Medusa, o Minotauro e o Dragão-de-sete-cabeças; tudo isso para pegar a rosa azul num jardim, levá-la até o castelo e, assim, salvar a vida de sua amada – a bela princesa Nazidir.
No meio do quinto ano, comecei a ler contos de fadas. Tomava os livros emprestados de algumas colegas. Era um encantamento a cada livro. Eu mergulhava naquelas páginas repletas de palavras novas e de figuras deslumbrantes, cujas formas e cores só conhecia em sonhos. Através dessas histórias, viajei em caravanas, atravessei desertos de areia no lombo de camelos, dormi em tendas coloridas, hospedei-me em suntuosos palácios... conheci um "novo mundo" - o Oriente.
Creio que foi mais ou menos nessa época que desbanquei os outros contadores de histórias e passei a ser a contadora oficial da família. O meu reino era o quarto cheio de camas, onde se acomodavam todas as crianças a minha volta. Na sala ficavam os adultos: meus pais e minhas irmãs; às vezes, também os noivos e outras visitas. Relembro – com emoção e alegria – o orgulho que sentia quando um deles me interrompia, lá de longe, para corrigir um pequeno desvio da história original. Era tão bom contar histórias! Melhor ainda quando, no meio de uma narrativa, eu escutava o silêncio vindo lá da sala de visitas. Todos estavam me ouvindo! Até meu pai! Era a glória. Era, em êxtase, que eu concluía aquela história.
Já no ginásio, comecei a tomar emprestado as revistas de Walt Disney. Foi um novo deslumbramento. Aquele era um outro mundo: as histórias divididas em quadrinhos; a ausência da voz do narrador; as palavras escritas em balões; os personagens eram bichos que agiam como se fossem pessoas... Apaixonei-me pelos personagens "do bem" como Pateta, Lobinho, Vovó Donalda, Professor Pardal... e, principalmente, pelo desventurado Pato Donald, paixão mantida até hoje. Também me apaixonei (Vou confessar em segredo) pelos personagens "do mal". Torcia para os Irmãos Metralha e Mancha Negra terem sucesso em seus assaltos ao muquirana do Tio Patinhas. Também gostava da bruxa Madame Mim e do Lobo Mau; este tão desajeitado em sua eterna perseguição aos Três Porquinhos.
Não demorou muito, comecei a ler revistas para moças e senhoras: Capricho, Sétimo Céu, Contigo, Grande Hotel. Elas veiculavam pequenas reportagens sobre os atores dos cinemas francês e italiano, comentários sobre os filmes, algumas propagandas de perfumes e produtos de beleza; mas o recheio principal, o que as fazia serem disputadas pelas adolescentes, quase a tapas, eram as deliciosas histórias de amor em quadrinhos: as fotonovelas. Passei muitas tardes lá no alto da mangueira – escondida – saboreando o romance entre o rapaz bonito e a mocinha; esses estavam sempre combatendo um vilão ou vilã que, geralmente, formava o terceiro vértice do triângulo amoroso.
Essas revistas eram proibidas por alguns pais, temerosos de que suas mocinhas despertassem cedo demais para o amor. Minha mãe as odiava; atribuía a elas perigos terríveis; seriam "a nossa perdição". Aliás, esse ódio era extensivo aos romances. Ela, assim como todos os ditadores, temia os livros e até ameaçava atirá-los ao fogo Não aprendeu a ler, porém sabia que os romances narram histórias de amor. Como era possível alguém, que não conhecia nada do universo da leitura, intuir que a palavra escrita possui mágica e poder libertador, é uma pergunta que me faço até hoje. Minha mãe temia (creio eu) que esse poder, aliado ao poder do amor – ambos revolucionários – pudesse nos libertar do peso esmagador de seu matriarcado.
Mais tarde, com o crescente acesso aos aparelhos de televisão e o "boom" das telenovelas, as fotonovelas, assim como as radionovelas, foram aos poucos deixando de existir; eram tidas como "cafonas" e sem nenhum valor. Eu, imitando as outras garotas, destruí a pequena coleção que salvara da ira de minha mãe. Só depois, quando já estava cursando a faculdade de Letras, fiquei sabendo que algumas das histórias, tão lindas, que havia lido na adolescência, eram adaptações de clássicos da literatura universal: Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, O Corcunda de Notre Dame, O Morro do Ventos Uivantes, Orgulho e Preconceito. Hoje, arrependo-me de não tê-las guardado. Seriam preciosas relíquias!
Entre os quinze e os dezoito anos, enquanto fazia o curso secundário, atual ensino médio, comecei a ler romances. A pequena biblioteca do Colégio Municipal de Santo Estevão possuía coleções completas de José de Alencar, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rêgo, além de algumas outras obras de autores nacionais e estrangeiros. Os romances podiam ser lidos na salinha onde funcionava a biblioteca ou podiam ser levados para casa por até quinze dias. Fiz meu cartãozinho e, com esse passaporte, comecei a viajar pelo Brasil e pelo mundo. Lendo José de Alencar, fui ao Rio de Janeiro do século XIX: andei de carruagem; fui transportada em luxuosas liteiras; exibi-me no Passeio Público; freqüentei teatros lotados; participei de saraus; valsei nos bailes entre belas damas e elegantes cavalheiros...
Voltei à Bahia e, guiada pela mão de Jorge Amado, saí perambulando pelas ruas ensolaradas de Salvador; fui conhecer os malandros, as prostitutas, os marinheiros, os vagabundos, os capitães de areia. Na companhia desses personagens, comi peixe frito no Mercado Modelo; experimentei cachaça nos botecos do Pelourinho; tomei banho de mar na Ribeira; passei uma tarde em Itapoã; freqüentei o curso de arte-culinária de Dona Flor; naveguei em jangadas pela Baía de Todos os Santos e quase morri afogada junto com Guma naquela perigosa noite de tempestade. Em Ilhéus, temi os jagunços; escapei de tocaias; colhi cacau e dancei no Baitaclan usando salto alto e cinta-liga.                                                                                
Depois parti para o sul do País e ouvi "o tempo e o vento" movimentando a roca da velha Bibiana. Ali, com os bravos gaúchos de Érico Veríssimo, cavalguei pelos pampas; pernoitei nas coxilhas abrigada do minuano apenas pelo poncho; temi as guerras e, feito louca, me deixei seduzir pelos Rodrigos: um certo  capitão e o doutor, seu bisneto...
Tempos depois, saí do Brasil e viajei por outros países. Num deles, vi a fantástica Macondo de Gabriel Garcia Marques varrida por "cem anos de solidão". Depois, fui chamada a um reino distante e presenciei uma reunião de cavaleiros na "Távora redonda". Eu era uma bela princesa, assim como Guinevere, dividida entre dois amores: o rei Arthur e o primeiro cavaleiro, Lancelote. Naquele salão, contemplei com reverência a lendária espada Excalibur, escutei a harpa do Merlin e vi o Santo Graal ser trazido à mesa por uma presença invisível e, depois, misteriosamente, desaparecer.
Outras vezes, saí navegando pelos mares e oceanos. Acompanhei as aventuras do capitão Nemo; tive medo de Mobi Dick; naveguei durante dias e dias num pequeno barco acompanhando o peixe, "o velho e o mar"...  Certa vez, tomei emprestado um livro de nome “Xogum, as sementes do dragão”. Então, embarquei num navio Holandês o “Erasmus” e cheguei a um misterioso país em pleno século XVI. Era a terra do sol nascente: o Japão. Lugar governado pelos senhores feudais e seus exércitos de samurais. Foi ali que aconteceu o belo romance entre o inglês, piloto do Erasmus, e uma senhora da nobreza, esposa de um perigoso guerreiro samurai. Acompanhando esse par, aprendi sonoras palavras: tufão, concubina, travesseirar, galera, suserano, vassalo, xogum... Lembro, ainda, algumas da língua japonesa: “bushido”, “sepuku”, ”tai-fun”, “isogi” (isógue), “konnichiwa”... Estive ainda em guerras sangrentas. Numa delas, acompanhei uma história de amor para descobrir “por quem os sinos dobram”; noutra, levei um soco no plexo solar ao saber qual era “a escolha de Sofia". Essa história, misteriosamente, feriu minha alma... Por isso nunca conclui a leitura nem assisti ao filme.                                                                                                             
É... os livros não proporcionam apenas viagens agradáveis, não. Há  viagens que nos levam para dentro de nós mesmos e podem ser assim...  cheias de dor...
Quando li esses últimos livros de que falei, já estava cursando a faculdade de Letras. Continuava lendo por minha própria conta e por indicações de leitores mais experientes. Os professores de Literatura, nos primeiros semestres, conduziram-me ao universo dos poemas. Ah, com esses exigiam mais sensibilidade histórias...                                                                                                                              
No começo, não conseguia perceber-lhes a mensagem cifrada, as figuras de linguagem, conforme nos solicitavam nas análises. Lia, relia e ficava em meu canto estranhando-lhes a sonoridade, a multiplicidade de sentidos, o significado inesperado de uma palavra... tão conhecida e ao mesmo tempo tão nova. Aos poucos comecei a gostar de vários poetas. Gostava principalmente dos românticos Álvares de Azevedo e Gonçalves Dias.                                                                    
Nos semestres mais adiantados, estudamos literatura moderna e, então, me emocionei com Cecília Meireles, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e, definitivamente, apaixonei-me pelo poeta Manoel Bandeira. Ele ensinou-me a poesia do cotidiano e dos objetos "trouvès" ...Mas foi com a poesia da infância e da  “vida que poderia ter sido” que ele tornou-se para mim uma "estrela da vida inteira". O poeta pernambucano que "engoliu um piano e ficou com as teclas de fora", aos poucos, foi se tornando uma espécie de amigo que eu houvesse conhecido em minha infância de menina solitária.
Paralelamente, fui conhecendo, nas aulas de Língua Portuguesa, dois tipos de texto pelos quais mantenho eterna e crescente fascinação: a crônica com sua linguagem ágil, irreverência e humor; o conto com sua intensidade dramática e beleza poética reveladas em poucas páginas e, às vezes, em poucas linhas.
Foi, ainda, estudando Literatura que voltei ao sertão. Dessa vez, pisei o chão esturricado da caatinga e vi criaturas de "vidas secas" à procura da terra prometida. Estive em São Bernardo tentando entender a rudeza de Paulo Honório. Depois acompanhei o fascinante rapaz (Ou seria a moça?) conhecida como Diadorim; em sua companhia, adentrei as veredas do "grande sertão" e escutei o jagunço Riobaldo falar sobre um pacto com o tinhoso; e ainda posso ouvi-lo dizer "O sertão é aqui mesmo, dentro da gente; o sertão está em toda parte".
 Ainda "pelejando" no sertão, conheci as plantações de cana e os engenhos de açúcar da Paraíba; num deles encontrei um "menino de engenho"; achei que éramos parecidos. Ambos crescemos vagando pelos arredores da fazenda a remoer pensamentos. Muito do que o menino viu e sentiu eu também vi e senti do mesmo modo. Esta é uma das mágicas da palavra escrita: o outro, aquele que está ali nos livros, somos nós mesmos.
Creio que esses últimos romances de que falei, os romances sertanistas, foram muito importantes para eu valorizar a linguagem de minha gente, a minha linguagem, sempre pontuada por palavras fortes, impregnadas pelo sotaque nordestino. Pude também compreender que os rendeiros, os ciganos, os loucos da minha infância, os homens, as mulheres, as crianças que conheci ou de quem ouvi contar, estão aqui – dentro de mim – esperando eu lhes dar voz e contar suas histórias...
Penso, ainda, que através da leitura, pude me reconhecer: sou mulher nordestina, gente da terra com o umbigo enterrado na porteira do curral. Agora, finalmente, me orgulho de minha origem e percebo a beleza de tudo que vivi em minha infância de "menina de fazenda".
E, para encerrar declaro definitivamente: amo os livros; amo a poesia; amo as palavras. E amo, sobretudo, a palavra escrita e respeito seu poder de construir... e de destruir mundos.

(maio de 1997)