segunda-feira, 2 de setembro de 2013

COLIBRI





Naquele dia, a mulher queria ir trabalhar mais cedo e já estava quase se atrasando, mas ao abrir portão, parou indecisa. Sentiu um arrepio de frio e viu-se envolta em uma névoa espessa. Pareceu-lhe que transpusera um portal e, agora, encontrava-se num mundo ártico. Um véu esvoaçante e cinzento pairava sobre tudo, impedindo-a de enxergar os contornos e movimentos da rua. Ia entrar para pegar um agasalho e trocar a sandália rasteira por botas, quando foi retida por outra visão surpreendente: vindo do céu cinza-prata, um ser alado passou por ela, adentrou por entre as grades e aterrissou meio desajeitado no ladrilho da varanda. Por alguns instantes, ficou embevecida a contemplar aquele pequeno ser azul-azul, resplandecente, que cintilava aos seus pés, frágil e balouçante como uma pluma: um beija-flor.
Tomou- o nas mãos e examinou-lhe o corpusculozinho sob as penas em busca de ferimentos. Nada encontrando, aninhou-o no peito, tépido e macio, em sua quieta-inquietude de pássaro. Levou-o ao jardim e abriu as mãos para libertá-lo, porém o colibri firmou as pequeninas garras em seu indicador e ali ficou imóvel
A mulher olhou-o inquieta: um guainumbi pousado em seu dedo...
 Colocou-o, delicadamente num galho da roseira e esperou. Nem teve tempo de apará-lo. O pequenino despencou junto com a rosa que tentara bicar e ambos jazeram aos pés da mulher: azul e branco, frágeis e belos.
Atarantada, recolheu os dois – carne e algodão – um em cada mão. Precisava ir trabalhar. Saiu à rua e soltou o beija-flor impulsionando-o para o alto.
Ele voou, pousou no fio de luz e ali quedou-se,  quase uma mancha azulada,  não mais iridescente, a espiar o vazio cinzento do céu de abril. O mundo era enorme.
A mulher precisava ir trabalhar. Arrancou-se da calçada e caminhou para o ponto de ônibus, úmida e desfolhada como a pequena rosa que colocara no bolso da blusa.  Ia traspassada pela visão daquele ser voejante, preso ao fio de luz, sem saber que direção tomar em meio à neblina que começava a suavizar-se, rasgada pelos primeiros raios de sol da manhã.  O mundo era infinito.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

SARAU LITERÁRIO:APRESENTAÇÃO DO POETA JIVM






E agora, o diálogo artístico se completará com a poesia, que é, ao mesmo tempo, dança e música – a dança e a música das palavras...  Nosso convidado é o poeta José Inácio Vieira de Melo que veio lá de Jequié para lhes apresentar sua poesia. José Inácio nasceu em Alagoas, mas está radicado na Bahia desde 1988 e, é como poeta baiano, que ele se insere no universo literário. Além de poeta, ele é jornalista e produtor cultural.
 Já publicou sete livros. Tem poemas publicados em várias línguas. Participa de inúmeras antologias no exterior, atua como coordenador e curador de muitos eventos literários, recebe convites de todo canto do país para participar de bienais do livro e feiras literárias. Nesse ano de 2013, ele tem participado de tantos eventos de norte a sul do país (chegou de BH e vai sair daqui direto para Salvador) que nem sei como achou tempo de aceitar nosso convite para esse pequeno evento. Gente, eu podia ficar aqui falando do escritor por um tempão, mas prefiro falar de sua poesia.
 José Inácio é conhecido no meio literário como o “Cavaleiro de Fogo”, não apenas por ter fogo no nome (Inácio) e ser um vaqueiro de fogo nas ventas, como se diz no sertão, mas principalmente pelo ardor de suas palavras. Tem esse codinome por causa do fogo que emana de sua poesia, uma poesia telúrica, sonora, pulsante, carmesim... capaz de tirar o leitor da acomodação, do lugar comum e, poeticamente, transportá-lo com sua sonoridade vibrante, a um mundo onírico – povoado de personagens bíblicos e heróis mitológicos, vaqueiros e estrelas, algarobeiras e mandacarus, rosas encarnadas, mulheres e éguas.
 Em todos os seus livros, ecoa o sertão da infância que, transmutado por sua poesia, é um sertão mítico – que extrapola o território convencional e pode ser “o mundo inteiro”. Isso é mais forte em seu último livro, “Pedra Só”. Para escrever esse livro, o poeta busca, no corredor da memória, as mais longínquas imagens, cheiros e sons do Sertão. Através delas, ele cria o país do couro, um reino encantado, território mítico que tanto pode ser sua fazenda Pedra Só, na Chapada Diamantina ou o povoado de Olho d’Água do Pai Mané, em Alagoas, terra onde ele nasceu. Mas também, pode ser que esse reino seja um lugar ou um não-lugar, que se limita com a ilha grega de Ítaca e, ao mesmo tempo, com a cidade de Tróia, na Turquia.
 E como vivemos na cidade que é “Portal do Sertão”, e estamos falando do reino da poesia, “Pedra Só” pode ser aqui mesmo, no foyer do Centro de Cultura Amélio Amorim... Então, convido todos vocês a adentrarem esse reino encantado.  E para iniciar o transporte, o translado, vou convidar a poeta Larissa Rodrigues, coordenadora da Diabo A4 editora  e do Feira Coletivo Cultural, para fazer a leitura de um poema de “Pedra Só”. Deixemo-nos, então, conduzir por sua bela voz!


terça-feira, 2 de abril de 2013

A MENINA, O SOLDADO E O PRISIONEIRO




Naquele dia, a menina saiu para a escola mais cedo. Aos seus olhos, abria-se uma daquelas manhãs de sol morno e vento suave, uma manhã de abril: bela e orvalhada. Levava a pasta escolar na mão esquerda e na direita, um ramo de rosas. Estava alegre, embora um pouco ansiosa: sua equipe iria declamar um poema, o mais longo, porém o mais bonito entre os que a professora distribuíra. Começou a percorrer a longa avenida de terra batida que a levaria ao centro da cidade: de um lado, o pasto de capim pangola onde o pai mantinha algumas vacas leiteiras e do outro, um matagal entremeado por casas esparsas e humildes. Ia descendo a ladeira devagar, mergulhada na leitura:
“Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem
Que o homem confiará...”

            Quando estava no meio da ladeira, beirando a lagoa, ouviu gritos e imprecações. No topo, divisou um homem a cavalo. Parecia que era um soldado conduzindo um prisioneiro. Parou e ficou aguardando... Confiará no homem como o vento confia na palmeira... O coração acelerou. Meu Deus! Como a palmeira confia no ar... Era um homem alto e moreno, imponente na farda verde do exército. Anda vagabundo! Anda! À frente do cavalo, alguém avançava a passos trôpegos, instado pelos gritos e pelas lapeadas da taca. Como o vento confia no azul... Cachorro! Ladrão! A menina susteve a respiração. O prisioneiro era um menino magro, um pouco mais alto do que ela, e estava com as mãos atadas. Como o menino confia em outro menino... Estava preso ao cavalo por uma corda e, a todo instante, parecia que o animal iria pisoteá-lo.  Arregalou os olhos tentando ver melhor através da cerração que vinha da lagoa... O homem confiará no homem como o vento confiará... A folha de papel escapou-lhe da mão. Reconheceu o cavalo, o soldado e o menino: Trovão, o Sargento Oduvaldo e Chiquinho. O tempo parou nas asas douradas da manhã. A menina abraçou a pasta com força, um grito inarticulado nos lábios abertos, o vento desmanchando as pregas da saia, as patas dianteiras de Trovão suspensas no ar, as dragonas reluzindo nos ombros do cavaleiro... O lobo e o cordeiro pastarão juntos... Chiquinho olhou para ela, o rosto magro devastado de vergonha e de dor. Num fiapo de voz, a menina implorou ao pai que libertasse o filho, os olhos alagados, o corpo trêmulo. Inclusive as terças-feiras mais cinzentas... O soldado de chumbo a encarou, metais nos olhos, metais na farda, metais no coração, ordenou que seguisse seu caminho para a escola; o filho iria ficar a pão e água, preso no quartinho dos fundos. Chiquinho, seu vizinho, seu colega – ficaria preso – sem poder declamar as últimas estrofes.
A menina apanhou o poema no chão e foi declamando aleatoriamente, os versos de Thiago de Mello, enquanto subia a ladeira quase correndo:
abertas para o verde onde cresce a esperança.”
haverá girassóis em todas as janelas
a abrir-se dentro da sombra
“Fica decretado que, a partir deste instante,

          Na aula de Português, justificou a ausência de Chiquinho e declamou emocionada a estrofe do poema que caberia a ele:
 “Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
A partir desse instante, e do pântano enganoso das bocas.
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e sua morada será sempre
o coração do homem.”